Ensaios brevíssimos: a máquina de produção de rostos num retiro zen-budista por Vinicius Spira

rostos

Por Vinicius Spira

Este pequeno ensaio busca articular uma visada etnográfica sobre a meditação com o repertório de preocupações e valores sustentados pela Comunidade Zendo Brasil, filiada ao Budismo Zen da tradição Soto Shu, com sede em São Paulo. A análise mobiliza o conceito de rostificação proposto por Deleuze e Guattari em Mil Platôs para compreender o processo de produção de rostos a partir das rugosidades de uma parede, e tenta aproximar uma crítica dos processos de subjetivação abordados em Mil Platôs com a problematização operada pelo zenbudismo da noção de “eu” ou de “eus”, experienciados como entidades fixas e separadas da realidade circundante. O autor do texto, Vinícius Spira, é antropólogo do Coletivo Asa e membro praticante da Comunidade Zen Budista desde 2009. O termo Rohatsu Sesshin, que aparece no início do texto, refere-se ao Retiro de Iluminação de Buda, realizado anualmente durante os sete primeiros dias de dezembro.

 

A máquina de produção de rostos num retiro zen-budista

“Introduzimo-nos em um rosto mais do que possuímos um.”

Ano Zero – Rostidade. In: Deleuze, Gilles;

Guattari, Felix. Mil Platôs, cap. 7, vol 3.

Rio de Janeiro: editora 34, p. 44.

 

No Rohatsu Sesshin de 2014, realizado em São Paulo entre os dias um e oito de dezembro, sentei em meditação por cerca de oito horas por dia, durante sete dias. Meus olhos estiveram abertos durante boa parte do tempo, expondo-se a um trecho de parede em frente a mim – reproduzido na metade esquerda da figura. É comum que, nestas circunstâncias, saliências e irregularidades passem a assumir a forma de rostos – quatro deles foram replicados isoladamente na metade direita da figura: (a) o perfil da cabeça de um cachorro; (b) o rosto inclinado de um sábio chinês, com chapéu e bigode em “v” invertido; (c) a vista frontal da cabeça de uma naja, com seus perigosos olhos hipnóticos; (d) o rosto de um palhaço, com sorriso largo, olhos esbugalhados e topete.

Como entender esta máquina de rostificação que opera em nós de modo quase involuntário e inconsciente, transformando uma matéria-prima tão estéril num produto altamente arbitrário e inventivo? Comecemos observando o seu modo de operar.

Como indicam as figuras apresentadas, a rostificação parece começar com a procura por dois olhos na forma de um par contíguo de manchas semelhantes. Os olhos tendem a atuar como pontos de ancoragem na busca de outros traços fisionômicos nas imediações. Sequências lineares de saliências contíguas formam arcos da boca e contornos de rosto, dentre outros aspectos. Continuamente e na medida do possível, procura-se barrar ou anular a interferência de saliências não conformes. Vazios também são fundamentais para a composição de um todo que, em última instância, valida-se pelo reforço recíproco e simbiótico de suas partes.

Todo este processo obedece a um mecanismo binário do tipo sim-não que decide se os rostos passam ou não passam, se são aprovados ou reprovados. Ao mesmo tempo outro mecanismo opera em termos de grau e atribui notas aos rostos, estipulando níveis aceitáveis de deformidade. Em ambos os casos, porém, o objetivo da máquina de rostificação é submeter os rostos a padrões de normalidade, inscrevê-los em determinados modelos pré-configurados, enquadrá-los em certas expectativas. É assim que cada rosto tende a adquirir uma identidade estática e precisa.

Uma vez prontos, os rostos revelam sua razão de ser: eles passam a nos comunicar algo – não no sentido de transmitirem uma mensagem, mas de serem uma mensagem. Neste sentido os rostos não são simplesmente rostos: são identidades subjetivas, eus ou aspectos do eu. O importante aqui é notar como as possibilidades de leitura da parede tornam-se limitadas àquelas em que há rostos específicos, que se distinguem uns dos outros e das áreas circunvizinhas.

Tais limitações parecem análogas ao modo com que fomos educados e condicionados a enxergar a nós mesmos e às nossas sociedades: acreditamos na existência de indivíduos distintos uns dos outros e do ambiente que os cerca. Esta concepção fundamenta valores centrais para nós, como os da responsabilidade, da igualdade, do mérito, da culpa etc. Os rostos são, assim, uma representação visual e didática de processos mais complexos, que nos prendem a modos consagrados e autorizados de pensar e agir. Introjetamos este poder a tal ponto que ele resiste tenazmente ao desligamento mesmo quando lhe oferecemos o material pouco expressivo representado por um trecho de parede.

Os rostos representam obstáculos da prática, mas são também os seus portais, já que não podemos partir senão deles. A meditação amplia nossa capacidade de observar e afetar máquinas como a de rostificação. Estudar os modos de construção de rostos é também aprender os meios de sua desconstrução. É vê-los como pontos de partida e nunca de chegada: assim a atividade da máquina de rostificação torna-se incessante, e os rostos perdem seu aspecto definido e estático, afigurando-se ambíguos, múltiplos, heterogêneos, simultaneamente presentes e ausentes. Nestas condições, a cobra ameaça e ri, o chinês sussura uma sabedoria que desejo e não desejo ouvir, o palhaço não cessa de parecer ora idiota, ora feliz, ora indefinível. Mais do que isso, os rostos liberam seus traços, contaminam-se a todo instante com pedaços de outros rostos e mesmo com saliências a-subjetivas, com não-rostos. As duas metades da figura unem-se e distinguem-se ao mesmo tempo, e analogamente relativizam-se méritos, culpas, responsabilidades, indivíduos. Tudo muda em frações de segundo, a tal ponto que não há mais tempo de consolidar rostos, de consolidar o próprio observador da parede, de consolidar a parede.

“O rosto é inumano no homem, desde o início […] se o homem tem um destino, esse será mais o de escapar ao rosto, desfazer o rosto e as rostificações, tornar-se imperceptível, tornar-se clandestino” (op.cit., p.36).

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