Design como solução e armadilha

Este pequeno texto foi publicado no jornal da Comunidade Zendo Brasil (Ano 17, n. 63. 1o trimestre 2018), e analisa a reforma do espaço de recepção do templo Taikozan Tenzui Zenji pelo praticante, arquiteto e antropólogo (membro do Coletivo ASA) Vinícius Spira. Trata-se de um breve relato etnográfico sobre o desenvolvimento do projeto, execução das obras e impacto das transformações no dia a dia de funcionamento da comunidade. O objetivo é mostrar como toda atividade de projeto se propõe como solução e ao mesmo tempo traz armadilhas representadas pelos desafios de construir e utilizar o que construímos – buscando inspiração numa reflexão do antropólogo Tim Ingold.

 

 

Legenda da imagem: (1) entrada; (2) circulação lateral da casa; (3) acesso à Sala de Kanon Bodhisatva e às áreas interiores do Templo; (4) mesa da recepção; (5) lojinha; (6) sapateiras; (7) vitrine para venda de roupas; (8) bancada retrátil com banqueta.

 

Reforma da nossa recepção

Neste ano reformamos o espaço da nossa recepção, e ofereço aqui um relato da mudança, do meu ponto de vista como arquiteto e coordenador administrativo da Comunidade – cargo do qual me despeço agora, com sinceros agradecimentos. A reforma envolveu diversos lugares e atividades: mural, mesa de atendimento, lojinha, estoque de produtos, guarda de calçados e de pertences dos visitantes. As mudanças visaram facilitar nossa prática budista, mas a própria reforma pode ser entendida como uma prática, que vale a pena ser recontada. Para tanto, evito tratá-la como uma solução satisfatória de problemas determinados, e exponho algo dos bastidores do trabalho, com seus imprevistos, incertezas e equívocos, para compartilhar os aprendizados envolvidos.

Antes da reforma, dois fluxos incompatíveis conviviam na recepção. O primeiro correspondia ao trânsito de carros e pessoas pela lateral da casa. O segundo, perpendicular ao primeiro, era formado por pessoas descalças que iam e vinham do interior do Templo às prateleiras em que os calçados eram guardados. Para evitar que estes fluxos se contaminassem, trouxemos a guarda de calçados para trás da mesa da recepção, justo ao lado da entrada da sala de Kanon. Ali, desenhamos sapateiras baixas na forma de módulos de madeira com rodinhas, que permitem às pessoas se sentarem e guardarem seus calçados.

Por sua vez, a lojinha continuou na posição original, mas ao invés de mantermos a vitrine única de alto a baixo, privilegiamos a altura do olhar e pensamos em módulos expositores com uma distribuição mais horizontal. A decisão abriu espaço para armários fixos na parte inferior, construídos em concreto (o que também serviu para inibir os cupins que haviam infestado os móveis anteriores). A lojinha apresenta assim um contraste entre elementos pesados e leves, opacos e transparentes. Vemos como questões utilitárias, estéticas e construtivas foram sendo conciliadas como um conjunto.

A síntese, porém, nunca é perfeita ou coesa. Nossas tentativas de antecipar os problemas sempre fracassam, em alguma medida. As bancadas de concreto, por exemplo, não ficaram totalmente niveladas, e precisaram de um preenchimento posterior. Para as portas de correr das sapateiras, só encontramos treliças em madeira escura, o que parecia destoar da tonalidade clara dos móveis – ao final a diferença ficou interessante. Além disso, só no meio da obra é que percebemos a possibilidade de ter uma vitrine suplementar para expor as roupas à venda – mas tivemos que aumentar a altura das bancadas de concreto, prejudicando a visualização do mural, que por isso mudou para perto da mesa de recepção.

Outras dificuldades vieram com a utilização do espaço. Na área das sapateiras, eliminamos os chinelos do Templo porque era impossível mantê-los organizados (também, eles pareciam apetitosos aos nossos cachorros), o que obrigou as pessoas a usarem seus próprios sapatos com mais frequência. As sapateiras, com rodinhas, começaram a bater nas paredes, e precisamos instalar borrachas protetoras. Já na área da lojinha, como não previmos um lugar para armazenagem de casacos e bolsas, os visitantes começaram a guardá-los nos armários de concreto, originalmente destinados ao estoque da lojinha. De um modo geral, os expositores e sapateiras foram projetados para favorecer rearranjos, mas pelo menos até agora nada precisou sair do lugar. Outra surpresa diz respeito ao atendimento: para ganhar espaço e praticidade, trocamos a mesa da recepção por uma pequena bancada com banqueta junto à lojinha, mas os responsáveis pelo atendimento preferiram manter a mesa por ser mais confortável e facilitar atividades como a limpeza de incensários – isto levou a uma redução do espaço das sapateiras.

Os problemas que relatei são parte dos desafios de transformar um sobrado em um templo, e decorrem também de uma presença intermitente da maioria de nós, praticantes. Mas há um terceiro aspecto, mais profundo e inerente a toda atividade de projeto. Em certo sentido, qualquer atividade de design representa uma armadilha que armamos para nós mesmos: ao buscarmos uma “solução” para certos problemas, acabamos criando outros tantos, representados pelas dificuldades de construir e utilizar o que construímos.1

A propósito, vale lembrar de como nossas frustrações com computadores são ironizadas pela piada: “os computadores vieram para resolver todos os problemas que não tínhamos antes!” Mas isto vale para tudo que fabricamos: mesmo uma simples colher envolve um aprendizado complexo e um risco de derramar líquidos, por maior que seja nossa habilidade. Estamos sempre engalfinhados numa parafernália de artefatos que nunca se adequam à dinâmica de nossos desejos e necessidades. Para Ingold, o design não deve buscar soluções “perfeitas”, mas gerir a imperfeição. Isso significa antecipar o possível, mas também minimizar imprevistos, corrigir equívocos, agir em plena atenção, captar oportunidades em pleno vôo… e seguir adiante, celebrando a impermanência.

1- INGOLD, Tim. Making: anthropology, archaeology, art and architecture. London and New York: Routledge. 2013.

 

 

 

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