Persona cinematográfica

bogart

“Há uma discrepância entre a brutalidade do beijo de Spade e o extenuante processo de filmagem da cena: foram necessárias sete tentativas para satisfazer o diretor John Huston, pois Bogart tinha dificuldade com o beijo. Isto se justifica por dois motivos: o primeiro, alegado pelo próprio ator, refere-se à falta de prática oriunda dos inúmeros capangas de gângster que encarnara até então, aos quais eram interditadas as cenas de beijo; o segundo, indicado por Astor, circunscreve-se ao desconforto do colega com o acúmulo de saliva em um canto da boca, devido à cicatriz no lábio superior (Sperber & Lax 1997:159-160). Tal cicatriz provocava um leve sibilo característico na pronúncia de Bogart, e existem várias versões de sua origem, todas apócrifas: infligida pelo pai na infância; causada pelo estilhaço de um projétil durante a Primeira Guerra Mundial; decorrente do confronto com um prisioneiro no período em que serviu à Marinha (Sperber & Lax 1997:27, 34-35); produto da briga desenrolada em uma bebedeira. Entre o insolente beijo de Spade e a obscura cicatriz de Bogart interpõe-se uma descontinuidade, a saber, aquela que separa a imagem de seu processo de produção e, em particular, a imagem artística, da trajetória social do artista. É esta descontinuidade que ambiciono superar neste ensaio”, escreve Luís Felipe Sobral, a respeito da cena de O Falcão Maltês, interpretada por Humphrey Bogart e Mary Astor.

Lançado em 2015 pela Editora Terceiro Nome (São Paulo), Bogart duplo de Bogart de Sobral persegue as pistas da persona cinematográfica do ator entre os anos 1941 e 1946. “Trabalho de etnografia histórica, o livro de Sobral é um ensaio arrojado sobre a especificidade da performance no cinema, que amplia a formulação condensada de Walter Benjamim: o ‘ator cinematográfico típico só representa a si mesmo’. Inspirado nos usos que Ginzburg faz do paradigma indiciário, Sobral reconstrói o itinerário de produção da persona cinematográfica de Bogart e mostra, a partir de um texto enxuto e muitíssimo bem escrito, que essa persona não se resume aos personagens que ele encarnou, tampouco se concentra apenas nele como ator. Resultado da união dessas duas pontas, ela se alicerça na ‘tensão dramática entre a indiferença aparente e a vulnerabilidade súbita’. Dessa tensão emanavam a força de sua atuação e a masculinidade a ela associada” – do prefácio de Heloisa Pontes.

Imagem: The Maltese Falcon, 1941 public domain trailer.

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